Se uma mulher grávida fica viúva, quem responde pela vida que ela carrega no ventre? De tão descabida, a pergunta até soa estranha, mas há cerca de um século, no Brasil, diante da morte do marido, muitas vezes a gestante sequer tinha o direito de ser responsável pelo feto que trazia dentro de si. Em tal situação, o Estado nomeava um representante para assumi-lo legalmente.
No processo histórico que transformou o Brasil em um dos líderes em taxa de cesárea no mundo, é patente a falta de autonomia feminina em relação aos direitos reprodufivos, revela artigo do Bulletin of the History of Medicine, publicoado pela Jhons Hopkins University Press.
De autoria dos pesquisadores Cassia Roth, da Universidade de Geórgia, nos Estados Unidos, e Luiz Antonio Teixeira, da Casa de Osvaldo Cruz (COC/Fiocruz), From
Embryotomy to Cesarean: Changes in Obstetric Operatory Techniques in
Nineteenth- and Twentieth-Century Urban Brazil detalha análise empreendida em registros ocorridos em
São Paulo e Rio de Janeiro. Segundo Teixeira, um dos principais recados do
artigo é apontar o impedimento ao protagonismo feminino.
“Essa falta de autonomia da mulher gera problemas
em diversos níveis. Tanto para a mulher que quer fazer a cesárea, quanto para a
que quer ter parto normal e para a que não quer ter o filho. É muito fácil
falar às mulheres o que elas devem fazer, mas muito difícil você ouvir o que
elas realmente querem fazer.
No âmbito da cultura médica, há também uma ideia
um tanto danosa de que existe somente uma forma certa de fazer as coisas, e as
mulheres só devem falar no nível que não atrapalhe essa forma”, observa
Teixeira, que, recentemente, organizou, junto com outros três pesquisadores, o
livro Medicalização do parto: saberes e práticas, lançado pela Hucitec editora.
Ao investigar a produção de conhecimento médico
dentro de um contexto social mais amplo, considerando aspectos religiosos e
jurídicos, o artigo fornece uma história da longa trajetória das intervenções
cirúrgicas no parto no Brasil e sua relação com a vida e os direitos fetais e
maternos.
Para analisar as transformações nas práticas e
visões sobre o parto, os pesquisadores se debruçaram sobre dissertações
médicas, periódicos médicos e jurídicos, legislação civil e criminal e
relatórios clínicos.
Foram pesquisadas, por exemplo, todas as dissertações
relacionadas a embriotomias e cesarianas da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro publicadas entre 1830 e 1940 e laudos clínicos mensais de todas as
mulheres atendidas na Maternidade de Laranjeiras, do início a meados da década
de 1920.
A investigação aponta que as mudanças nas
definições médicas sobre qual tipo de parto exigia intervenção cirúrgica
dependiam dos avanços técnicos e também de transformações nos âmbitos religioso
e legal.
Cesáreas são substituídas por embriotomias, mas
voltam à cena
Na primeira metade do século 19, a maioria dos
médicos lançava mão da cesárea em casos de obstrução durante o trabalho de
parto. Quase sempre, o procedimento resultava na morte da gestante, por
infecção.
Após posicionamento da Academia Francesa de Medicina, de 1852, em
defesa da preservação da vida materna, os médicos passaram a cada vez mais
adotar a embriotomia, procedimento extremamente violento e invasivo, que
sacrificava o feto, vivo ou morto, na tentativa de salvar a mãe.
Enquanto a medicina, em processo de profissionalização,
apoiava a embriotomia, a Igreja condenava o procedimento, pois considerava que
o início da vida se dava no momento da concepção. Na primeira metade do século
20: a cesárea passou novamente a ser priorizada, em detrimento da embriotomia,
que cai em desuso.
Segundo o artigo, a guinada foi baseada em duas
mudanças interrelacionadas: a aprovação do novo código criminal, de 1891, e do
primeiro código civil, de 1916, que concedeu proteções legais ao feto, além da
disseminação de inovações nas técnicas da cesárea, a partir de 1915.
Considerada mais segura se comparada à
embriotomia, a cesárea acabou sendo eleita pelos médicos como prática
preferencial em gestações de risco. A análise de Roth e Teixeira revela, porém,
um cenário mais complexo.
Não se tratava exclusivamente de garantir a vida do feto e da gestante. No Brasil “moderno”, apontam os autores, a orientação dos médicos passou a ser essencial para que as mães pudessem conceber e criar “cidadãos brasileiros saudáveis”.
Apesar dos conflitos com a Igreja, diz o
artigo, ambos caminhavam lado a lado com o objetivo básico de subordinar a
tomada de decisão das mulheres “à autoridade masculina, seja ela o padre, o
pai, o médico ou o presidente”.
“Em um nível mais básico, os filhos - como futuros
trabalhadores, herdeiros, governantes, escravos - são importantes para a
manutenção do poder político e econômico. A continuação desse poder, então,
reside no controle das capacidades das mulheres de conceber e dar à luz filhos.
Neste artigo, mostramos que a subsistência econômica dos médicos, sua produção
de conhecimento e seu papel moral na sociedade repousavam sobre seu domínio
completo do parto, tanto o ato em si quanto na definição de como o ato deveria
ser. Ao mesmo tempo, os obstetras acreditavam estar fazendo a coisa certa”,
observa Roth.
Brasil tem a segunda maior taxa de cesáreas do
mundo
A expansão de técnicas obstétricas e das
maternidades transformaram o parto em um fenômeno hospitalar. Na virada do
século 21, a cesárea estava normalizada no país. Se tornou procedimento
preferencial para todos os nascimentos, especialmente entre a classe média e
urbana.
No Brasil, aproximadamente 55% dos partos
realizados no país são cesáreas. É a segunda maior taxa do mundo, atrás apenas
da República Dominicana. Se considerarmos a realidade no sistema privado de
saúde, a proporção pula para 86%. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)
indicam que a taxa ideal de cesarianas deve estar entre 10% a 15% dos partos.
Fundamental em determinadas situações de risco, o
uso indiscriminado do parto cirúrgico no país tem gerado problemas por
prematuridade. Teixeira cita também a desigualdade na assistência à gestante.
Se, por um lado, mulheres em melhores condições financeiras passam por
dificuldade para garantir o parto normal em gestações sem risco, por outro,
grávidas de classes menos favorecidas economicamente encontram dificuldade no
acesso ao atendimento.
“Há tanto o excesso de tecnologia quanto a falta
de tecnologia, dependendo do lugar e do grupo de pessoas que você faça parte”,
pontua o historiador, que integra projeto sobre medicalização dos nascimentos
no Brasil, parceria de pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz e do Instituto
Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz).
Apesar das questões que interferem sobremaneira no
protagonismo feminino, Teixeira considera que o cenário já foi pior. Cita,
entre os sinais dessa transformação, a criação de políticas públicas, como a
Rede Cegonha, “extremamente importantes para melhorar as condições de
assistência ao parto”; os movimentos pela humanização do parto, com “as
mulheres cada vez mais demandando seus interesses”; e a realização de
pesquisas, como a Nascer
no Brasil, inquérito nacional sobre parto e nascimento
realizada pela Fiocruz, que revelou desigualdades relacionadas à medicalização
do parto no país.
As idas e vindas na história dos direitos
reprodutivos
Segundo Roth, a história dos direitos reprodutivos
está repleta de idas e vindas. Atualmente, apesar dos avanços citados por
Teixeira, há mulheres morrendo por falta de assistência adequada ao parto e
questões relacionadas ao direito ao aborto terapêutico. No Brasil, a prática é
permitida em casos de estupro, anencefalia e risco de vida para a mulher.
“Como argumentei em meu livro A
Miscarriage of Justice: women’s reproductive lives and the law in early
twentieth-century Brazil, conforme outros estudiosos como Matthieu de
Castelbajac e Isabel Hentz demonstraram, essa história não é um progresso
linear de um passo 'repressivo' em direção a um futuro 'emancipado'", diz.
"Existem ondas de progresso e vales de
retrocesso. Parece simples de dizer, mas vale dizer de qualquer maneira:
racismo estrutural e interpessoal, estruturas patriarcais e práticas
patriarcais individuais, e classismo, tudo isso contribui para fatos como taxas
de mortalidade infantil negra mais altas do que as taxas de mortalidade
infantil branca no Brasil e a continuidade da criminalização legal e condenação
social do aborto”, pontua Roth, que em sua nova pesquisa analisa a saúde
reprodutiva de mulheres escravizadas no Brasil do século 19.
Karine
Rodrigues (COC/Fiocruz) - Agência
Fiocruz de Notícias
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